terça-feira, 16 de dezembro de 2008

'Favorecer só um direito pode piorar outro'




São Paulo, 12/12/2008
'Favorecer só um direito pode piorar outro'

Membros de grupo que monitora direitos humanos no país criticam falta de política de desenvolvimento integrada com o meio ambiente


DAYANNE SOUSA
da PrimaPagina


Políticas de desenvolvimento devem ser pensadas em conjunto com os direitos humanos pois, caso contrário, o próprio Estado pode acentuar uma violação, afirmam a socióloga Lígia Cardieri e o especialista em direito, Gabriel Jamour Gomes. Os dois são integrantes da Secretaria Executiva da Plataforma DhESCA Brasil (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), uma rede de organizações da sociedade civil que desenvolve relatórios de monitoramento dos direitos humanos no Brasil em projeto apoiado pelo PNUD.


“Vejo a complexidade do mundo atual, os direitos atuais. Se você cumpre alguns, acentua outros”, defende Lígia. Gabriel argumenta que políticas de desenvolvimento que visem apenas a criação de empregos podem, num primeiro momento, privilegiar o direito ao trabalho, mas acabar criando trabalho precário e prejudicar o meio ambiente. “Não se pode construir uma hidrelétrica na Amazônia e resolver o problema atual energético em prejuízo das comunidades ribeirinhas e indígenas”, diz.


Em entrevista à por telefone à PrimaPagina sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, comemorados em 10 de dezembro, os dois creditam a medidas estatais responsabilidade quase integral pelo avanço do cumprimento dos direitos no Brasil e no mundo. No caso brasileiro, vêem uma evolução a partir da Constituição de 1988, mas criticam a alta desigualdade socioeconômica. Para Lígia, combater a essa desigualdade é uma ação em prol dos direitos humanos.


Num de seus últimos documentos, a Plataforma DhESCA aponta leis e medidas brasileiras que consideram os ideais da Declaração: em 2002, a criação do Programa Nacional de Direitos Humanos e, no ano seguinte, do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Apesar disso, o documento identifica a falta de conhecimento de matérias de direitos humanos no Judiciário brasileiro como uma dificuldade de fazer valer alguns valores expressos em lei.


Confira a abaixo a íntegra da entrevista, na qual Lígia e Gabriel fazem um balanço da importância do documento nas políticas públicas e no direito e apontam a necessidade de fazer a Declaração ser mais difundida no país.


Como vocês vêem o papel da Declaração Universal dos Direitos Humanos hoje?
Lígia Cardieri –
Ela funciona como um farol. É superimportante, mas está longe ainda de estar realizada, e é por isso que tem extrema importância. Eu acho que muitos países, o Brasil é um exemplo, se inspiraram nela e até hoje a Declaração é invocada quando há, muitas vezes, a ausência de legislação local ou nacional. Mas a gente percebe que ela é um instrumento pouco conhecido do grosso da população. Então, acho que ela fica como um patamar de inspiração para uma humanidade melhor, mas o que predominou nesses dias de comemoração e que eu senti, vi e também concordo é: “bom, e a distância entre o real e o que está no papel? O que fazer para chegar lá? De quem são as responsabilidades?”


Gabriel Jamur – O que a Lígia falou é verdade, a função da Declaração é ser esse farol numa escuridão onde não existam direitos. Ela foi criada no período pós-guerra justamente por causa disso, para não deixar ocorrer um black-out como ocorreu durante o regime nazista ou o regime fascista na Itália.


É difícil transformar esse direcionamento em atuações práticas?
Lígia –
Uma coisa que vejo é a complexidade do mundo atual. Os direitos atuais. Se você cumpre alguns, acentua outros. Aumentar emprego pode ter custos ambientais, por exemplo. Então, tem que haver um pensamento mais complexo, precisamos juntar os saberes. O grande desafio é a integralidade dos direitos. Isto vai além da universalidade. Como eu posso cumprir um direito ambiental e ao mesmo tempo o país melhorar, distribuir a renda, garantir mais emprego?


Como resolver isso?
Lígia –
Os governos, o aparelho de Estado ainda funcionam muito setorizados. Cada um, cada setor, pensa nos direitos pelo qual é responsável. É preciso ter as coisas mais integradas.


Gabriel – O Estado tem, por exemplo, que criar um ambiente no qual a preservação seja um dos pontos centrais. Isso aliado a projetos de desenvolvimento. A gente não é contra que o país se desenvolva, mas ele tem que se desenvolver atendendo a critérios ambientais e questões sociais. Não se pode construir uma hidrelétrica na Amazônia e resolver o problema atual energético em prejuízo das comunidades ribeirinhas e indígenas que vão ter impedido o acesso a seus meios de vida, por exemplo.


Mas existem direitos que não se constituem expressamente como deveres do Estado? O Estado tem, por lei, que fornecer educação a todos, mas está expressa uma obrigação, da mesma forma, de fornecer emprego a todos, ou de preservar o meio ambiente?


Gabriel –
A gente entende que existe o dever, o Estado tem que garantir.


Lígia – Não, o que eu acho que está em discussão é que existem direitos que precisariam ser colocados em legislação. Ser mais firme contra a questão do trabalho escravo, por exemplo. Mas, em outras questões, o Gabriel tem razão. A maior responsabilidade ainda é a do Estado. É claro que a população precisa participar, mas dependendo do modelo de desenvolvimento, da política ambiental que o Estado adota, vai se causar danos ambientais ou estressar ainda mais um trabalho que já é mal remunerado.


Gabriel – O Estado é obrigado a criar um ambiente propício para que o emprego seja criado, e emprego de qualidade. É dever do Estado não deixar, por exemplo, a indústria canavieira criar um emprego em que o trabalhador morra. Quanto ao meio ambiente, o Estado não tem que plantar árvores, mas tem que impedir o desmatamento.

Existe uma dificuldade em tomar o direcionamento da Declaração e expressá-lo em leis nacionais?
Gabriel –
Na questão de legislação, no Brasil, a Declaração já teve um impacto muito forte, especialmente no processo constitucional. No regime de 64, foram excluídas todas as garantias mínimas da população. A Constituição de 88 foi muito consubstanciada, principalmente no artigo 5º, que fala das garantias fundamentais. O nosso problema, em termos de legislação interna, não é a falta da implementação dos princípios da Declaração. Isso tem sido agregado, cada vez mais. O problema é o discurso entre o mundo jurídico e o mundo da prática. É também uma questão de políticas públicas. Não adianta a gente ter uma constituição que fale que tem que ter educação para todos, quando o Estado dá pouca educação ou dá educação de baixa qualidade.

Quais seriam os desafios brasileiros pelos direitos humanos? Quais as maiores violações que nós temos atualmente?

Lígia –
Eu diria que a desigualdade socioeconômica no Brasil é tão brutal que a gente ainda tem que ter vergonha do que está acontecendo. E a diminuição da desigualdade tem que ser muito mais rápida senão vai demorar um século. Essa desigualdade é, para mim, o grande peso, a questão de fundo. Nós temos grande parte da população que não tem o que comer, que não tem moradia decente, que não conhece o mínimo da lei trabalhista, mas eu não faria uma hierarquia. Não é possível dizer que tem um problema que seja mais importante que outro. Temos que olhar para todos.


Gabriel – O problema no Brasil não é que a população não tem acesso aos direitos humanos. Tem gente que tem acesso a todos ou quase todos, mas o problema é que o mendigo aqui do outro lado da rua não tem acesso a nenhum.


Desigualdade é um tema mais caro aos países subdesenvolvidos ou é parte dos desafios que os direitos humanos têm em todo o mundo?
Lígia –
Com certeza, onde a desigualdade for parecida com a do Brasil, isso será um problema grave, mas existem outras desigualdades que não são socioeconômicas. Elas são de negar ao outro o direito de opção religiosa, o direito de ser diferente, ou de ser mulher, ou de ser homossexual. O conjunto dessas muitas desigualdades tem que ser levado em conta em cada situação. O multiculturalismo existe e, em cada país, ele vai ter pesos diferenciados.


Considerar a particularidade de cada país não vai contra a idéia de universalidade, que é o essencial da Declaração? O respeito às diferenças culturais não se choca com a propagação dos direitos humanos como universais?


Lígia –
Esse é o desafio da complexidade de que eu falava, de que o [sociólogo e filósofo francês] Edgar Morin fala. Certas coisas são essenciais. Ninguém diria que, por exemplo, não pode haver direito à comida. Todo mundo diz que sim. Mas tem questões como a das mulheres que sofrem mutilação do clitóris, o que alguns povos justificam em termos religiosos. A gente tem que trabalhar com muita informação. Com muitas alternativas explicitadas antes de invadir qualquer país, antes de dizer “vocês tem que parar com isso”. As próprias mulheres que saíram desses países, que tiveram a oportunidade de estudar, elas mesmas vão falar para suas companheiras. Tem que pressionar. Não se pode respeitar aquilo que mutila, por exemplo. Não se pode aceitar tortura, não se pode aceitar uma religião que as pessoas se matem, por exemplo. Eu acho que isso é um desrespeito porque aí nega a própria essência do ser humano.


Então, como impedir isso?
Lígia –
Vale a pena continuar pregando como universal sem achar que o outro é um bárbaro por estar fazendo diferente. Certas coisas não podem ser obrigatórias, compulsivas. A solução não é nem um país invadir o outro para enfrentar e nem deixar um país agir como quiser, fazermos de conta que não estamos vendo. Tem que pressionar, tem que discutir. Veja o direito ao aborto, por exemplo, ao qual eu sou favorável. Eu sei que não adianta passar uma lei. Assim como eu não admito que uma lei criminalize, ninguém tem que ser obrigado. Tem que se discutir isso. Eu acho que é possível a gente caminhar em direção a uma maior dignidade. Ainda estamos longe, mas é possível.


Em termos gerais, estamos nos aproximando mais do cumprimento dos direitos humanos?
Lígia –
Eu acho que hoje se fala mais neles. Há vinte anos, não se dava importância para as desigualdades. Mas, hoje, ainda está muito pouco aprofundada essa discussão. É fácil? É simples? Não é. Mas não se pode esperar 2 mil anos, de jeito nenhum.

Conheça o projeto
Saiba mais sobre o projeto
Relatores Nacionais de Direitos Humanos, apoiado pelo PNUD.

Disponível em: <http://www.pnud.org.br/cidadania/entrevistas/index.php?id01=3114&lay=cid>.

Acesso em: 16 dez. 2008.

Postado por Eliseu Raphael Venturi.

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